Um texto não se baseia só em instrumentos linguísticos. Nele também subjaz uma ideologia. Para descobri-la, será preciso investigar os elementos que o estruturam, a maneira como se estruturam e perceber suas relações com o contexto. Assim, podemos depreender a ideologia subjacente no conto A moça tecelã (*), de Marina Colasanti, se procedermos a uma análise de elementos significativos desse texto e os cotejarmos com os dados de que dispomos sobre a escritora, principalmente sua militância na defesa da afirmação social e existencial da mulher.
O conto, destinado ao público infantojuvenil, não é neutro nem inocente. Metaforiza situações existenciais. Em lugar de conduzir a uma acomodação, instiga. Inverte e reverte elementos da história de fadas tradicional, reescrevendo-a em perspectiva e linguagem atuais. Nele, a fantasia desmitifica o real, em vez de camuflá-lo. O imaginário é recurso persuasivo. Em sua riqueza e abertura a várias leituras, o conto ressalta, entre várias questões abordadas, a necessidade de se repensarem os conceitos de relacionamento conjugal e de relacionamento da pessoa consigo mesma.
Principia com a protagonista sozinha, tecendo sua manhã, numa situação de equilíbrio, com todas as necessidades físicas e existenciais satisfeitas por ela própria, com o auxílio de um tear mágico. A moça é sujeito de sua vida: “Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo que queria fazer”. Adiante, “… tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha”. Tece, então, um companheiro para fazer-lhe companhia e enriquecer sua vida com filhos. Mas instaura-se um desequilíbrio decorrente das desmedidas exigências do marido, em tudo oposto à tecelã: ele obcecado pelo ter e pelo mandar; ela realizada no ser e no fazer. Em sua ambição, descoberto o poder do tear, o homem isola do mundo a esposa, tornando-a objeto de realização de seus caprichos. Frustrada em seu desejo de companheirismo e amor, oprimida, anulada, ela percebe que teceu a solidão mais cruel – a de sentir-se só, estando acompanhada: “E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo”.
A desmitificação da ideia de casamento como fórmula de felicidade atinge seu clímax no trecho “Tecia e entristecia”, quando o ato de tecer, agora condicionado ao desejo exclusivo do esposo, deixa de apresentar para ela um sentido de satisfação existencial. O equilíbrio só se restaura por meio de um insight: a moça percebe o marido opressor como objeto que pode ser eliminado de sua vida. Determinada, retoma o papel de sujeito: “…começou a desfazer o tecido.” No fim, outra vez sozinha, a moça tece para si uma nova manhã.
No conto, a palavra “sozinha” apresenta dois significados: o de estar em solidão (carência do outro, uma circunstância negativa) e o de estar desacompanhada (ausência do outro, mas não necessariamente uma circunstância negativa). O jovem leitor, confrontado com as duas possibilidades significativas dessa palavra, é levado a tecer suas próprias conclusões a respeito do que seja um “final feliz” na história… e na vida. Passa a questionar, portanto, o literária e socialmente consagrado mito do “… e, juntos, foram felizes para sempre”.
Marina Colasanti, ela também uma “moça tecelã”, tece seu texto habilmente, por meio de elementos lexicais, sintáticos e coesivos bem entrelaçados – ideologia e linguagem costurados de maneira indissolúvel.
(* ) COLASANTI, Marina. Doze reis e a moça no labirinto do vento. 2ª. edição. Rio de Janeiro, Editorial Nórdica, 1985.