Othon M. Garcia
Flagrantes fixados por um auriverde tagarela, que, pelo visto, passou temporadas no Japão, pois só papagueou em haikais.
Vai morrendo a tarde…
A cigarra solta um ai,
desfalece e cai.
E aquela hastezinha
onde estivera pousada
pende acabrunhada.
“Morreu a cigarra!”
– grita um papagaio e, trêmulo,
a um galho se agarra.
A fala amarela
desse tagarela
pela selva ecoa.
E essa dolorosa
notícia o choro desata
dos bichos da mata.
“Que pena, coitada!”
– lamenta o auriverde arauto
co’a voz embargada.
“Cantora genial!
Incansável, sem igual.
Vou ao seu enterro.”
E, de galho em galho,
vai o enterro acompanhando
e… papagueando.
“ De todos os cantos,
uma multidão em prantos
vem para o velório.
Na noite luzindo,
legiões de pirilampos
co’os círios vêm vindo.
Lentos, se arrastando,
lagartas e caracóis
vêm se aproximando.
Um tanto atrasado,
chega, sombrio, um besouro
de luto fechado.
Agora, as formigas,
da cigarra muito amigas,
vão levando o corpo…
(Do poeta é uma intriga,
uma calúnia o que disse
da nobre formiga.
Não mandou a extinta
dançar, quando ela, faminta,
lhe pediu migalhas.
‘Cantei todo o estio:
me esqueci das provisões
para o tempo de frio.’
‘Então, dança agora’
– teria dito a formiga.
É mentira, ora!
Mentira ferina
do La Fontaine: a formiga
nunca foi sovina!)
… pela selva escura,
arquejando não co’a carga
mas com a amargura.
E toda a floresta
a seu modo manifesta
seu grande pesar:
Fúnebres, noturnos,
entreluzem-se confusos,
surdos sons noturnos.
Nos brejos, nos lagos,
de emoção batendo os papos,
coaxam os sapos.
Junto dum açude,
bufam bufos carurus
muito jururus.
Como garatujas,
de luto, no escuro, lúgubres
soluçam corujas.
Nem a Natureza
disfarça sua tristeza
pelo infausto evento.
No céu, as estrelas
tremeluzem soluçantes
e lacrimejantes.
Desolada, a Lua
empalidece e recua
pra atrás de uma nuvem.
Densa escuridão
se estende então como um manto
sobre a procissão.
Mas a bicharada
vara a noite, alumiada
pelos vaga-lumes.
Vem vindo a alvorada,
mas a legião alada
sufoca seu canto.
Sequer a anuncia
a emplumada sinfonia
dos clarins dos galos.
O longo, o dolente
matinal mugir das vacas
soa mais pungente.
Emocionadas,
as gotinhas orvalhadas
desfazem-se em lágrimas.
A própria alvorada,
no verão sempre corada,
tem a face pálida.
Segue a passos lentos
o cortejo entre lamentos,
sob um Sol sombrio.
Uma lebre enxuga
lágrimas e ajusta o passo
ao da tartaruga.
Árvores frondosas
inclinam-se respeitosas
ao passar do féretro.
Ali outra cigarra
desesperada lastima
a morte da prima.
No espaço adejando,
dois colibris vão deixando
cair duas pétalas.
Sobre um verde esquife
que as formigas vão levando
a um níveo lírio.
Uma vai portando,
com destino ao níveo lério,
pequenino círio.
O hábil, o perito
joão-de-barro, o construtor,
tem um ar contrito.
Nem o pica-pau
a sua emoção domina:
martela em surdina.
Mas, ali poisado,
grasna um corvo: ‘Nunca mais,
me atordoarás.
Vai, cigarra, em paz:
a morte é silenciosa e pó,
só pó e nada mais.’
(Que Deus te perdoe, ó corvo indigno do poema do poeta Poe)
Já está perto o abrigo
onde a cantora notável
terá seu jazigo.
E, sobre esse abrigo,
mil borboletas pairando
vão um pálio armando.
Na amplidão do céu,
uma nuvem como um véu
vela um Sol mortiço.
Um louva-a-deus desce
duma sebe e na relva reza
uma breve prece.
Silêncio mortal
marca o fim do funeral.
Vai morrendo a tarde…
… e, como alva jarra,
níveo cálice de um lírio
acolhe a cigarra.
[Nem Carmem Miranda
teve enterro tão chorado
e tão proclamado.
Só as aves maviosas
não lamentaram a morte
da rival ruidosa.]”
Louro, o arauto haikaísta