Olhares enviesados, passam uma pela outra. Desconfiança e medo. A grade, o porteiro eletrônico, o mundo seguro da jaula de luxo. Coração aos pulos, escapou do caco de vidro. Chega da escola, do balé, da natação, do curso de inglês, que fome, geladeira farta! A rua é seu espaço, sua casa grande, cem anos depois da senzala. Não fosse o menino no colo, choro toda hora, podia pegar mais dinheiro no sinal ou descolar um sanduíche com o cara do caminhão, que paga pelo prazer corrido e lambuzado. O quarto decorado, o galã da hora sorrindo na parede, brinquedos importados, janta defronte da TV. A barra está pesada, a polícia quase nunca passa, mas já passou três vezes e falou para ela desinfetar, fez ameaça. Os moleques da outra rua levaram seu dinheiro e ainda beliscaram sua bunda, chamaram de gostosa, não veem que menino de colo é choro toda hora, quer peito agora e ela sem nada para comer. Precisa ensaiar a nova coreografia, o rebolado, sexta à noite tem discoteca e toda a turma já sabe dançar igualzinho, não pode se esquecer de comprar o vestido preto de lycra, a colega deu a marca do batom e do esmalte da moda, droga, a vizinha rebola melhor! Aquela garota passou batido, a mochila cheia de grana e de resto de merenda e não é que nem merenda lá da escola pública. Ainda bem que largou daquelas tias, só mandavam decorar História do Brasil. Está esfriando, melhor pegar o papelão e o cobertor rasgado, o nariz purgando não deixa o neném mamar direito. Aquela garota olhou com cara de raiva. Teve até que esconder o relógio, presente de aniversário. Tomara a polícia tire mesmo aqueles pivetes da rua! Só dá para caminhar com segurança no shopping, nem no playground ela tem mais sossego, a outra fica de fora da grade, chamando. Se ainda tivesse cola para cheirar e enganar a fome, mas só o menino tem seu pouco leite. Antes de dormir vai navegar na internet, bater papo com amigos virtuais, gente do Primeiro Mundo. A criança parou de chorar e se aconchega no seu colo. Sob o viaduto, sonha com a merenda da outra menina, que sonha em seu quarto com uma rua sem meninas que assustem.