Caminho meus 48 anos pelas ruas do Rio de Janeiro, presente de premências, necessidades, sobrevivência, trabalho, trânsito, fragmentos de textos esboçados na mente. A poesia insiste em competir com filas de bancos, ônibus cheios, supermercados, notícias de crimes, pés levados por compromissos com isso e aquilo para onde? para onde? para onde? O futuro aperta o passo, a poesia (meu recheio, meu recreio) busca espaço entra braços agitados, corações descompassados. Tique-taques digitais em cada esquina marcam hora certa de chegar aonde? aonde? aonde? Uma senhora, eu… caminho pelas ruas, o susto de uns cabelos já grisalhos e o corpo nem tão leve, nem tão lépido, um certo anseio de não ser mais incomodada por apelos vagos, comecinho de vontade de pedir ao tempo um ensaio de parada, sentar no meio-fio um princípio de cansaço da cidade e seus desejos quentes, estômago um pouco embrulhado das ilusões vendidas nos cartazes. A miséria esbofeteia um prenúncio de histeria em mim, que não morro de fome, só fome de poesia. Sinal aberto, travessia…
Do outro lado da rua, as mãos mornas da parteira… Sem filosofia, sem quê nem pra quê, minha mãe cumpre sina de fêmea e bota no mundo a quarta menina… o choro da mãe, o choro da filha, vitória da vida… Vitória, Espírito Santo!… Passeios no Parque Moscoso… banhos de mar na Praia da Costa… visão de navios no porto, vindos de onde? de onde? de onde?… do lá de longe, lugares ainda sem rosto… Tempo de linguagem da pele, meu país o colo… Olhos curiosos para tudo que se move, gentes, plantinhas ao vento, bichinhos… Quentura de fralda molhada, o corpo descobre que sabe fazer água que nem mar, que nem chuva, que nem olhos de mamãe… Viagem comprida a Benevente… descubro força nas perninhas, podem andar sozinhas!… aprendo o ABC dos tombos… todo o tempo do mundo para tentar, descobrir, saber as coisas na ponta da língua, o sal do batismo, o açúcar das pedrinhas e da areia, gosto de alga e maresia… cheirar o conhecido e branco amor vindo do peito e o presumível sabor do urucum e do coentro colorindo a mesa…ah, moquecas capixabas feitas por mamãe, meu primeiro contato com a poesia!… Lua vai, Lua vem, vou descobrindo um mundo além das brincadeiras das irmãs… Sol e chuva em Vitória, meu pai inventando histórias e contando outras verdadeiras, mais antigas, que remetem a avós e tios velhos, aos pais dos pais dos pais, do lá de longe, pessoas ainda sem geografia… Sinal aberto… Travessia…
Do lado de lá da Avenida Presidente Vargas, Rio de Janeiro, um conhecido me acena, atravesso correndo o presente, deixo para trás meu pai, onde? onde? onde? saudades do pai, da filha que fui, do Espírito Santo…