Até não poder mais

“Enquanto os homens exercem seus podres poderes”, que nos seja permitido sonhar com poderes maduros, na medida exata da doçura.

Poder ser alguém o mais próximo de nós mesmos, dos nossos escondidos, com direito a máscaras apenas para vivenciar fantasias. E querer bem aos irmãos em suas diferenças de peles, sexos, gostos, ideias, crenças, sentimentos… Poder ser chamado e chamar o outro pelo nome próprio, nome comum, sem senhor nem doutor nem professor, excelências apenas pelo fato simples de se nascer gente. Não ter poder sobre as pessoas nem estar submetido a qualquer jugo: o poderoso encanto do diálogo, do olho no olho, das mãos dadas. Poder dizer sim e não, ouvir sim e não, sem que o mundo se acabe, monossílabos tônicos sem rejeição, pena, dor ou culpa.

Poder ser menino todo dia, o mundo um eterno brinquedo, buscar o lado de lá dos muros, a face oculta da Lua, olhos sem limites, pele sem fronteiras, ouvidos sem divisas, língua para saborear todas as línguas… Sentir-se um pouco bicho, planta, mineral, coisa, privar da fraternidade cósmica. Poder sentir o caminho, os passos, o passar de tempo e espaço, o gozo de estar a meta em cada aqui e agora.

Poder incluir no curriculum vitae, lado a lado com experiência profissional e cursos realizados, o tempo dedicado ao descanso, ao lazer, ao afeto, ao prazer, aos cuidados com o corpo e a alma, ao cultivo das plantas e outras formas de vida. Poder não competir, não tornar-se homem de sucesso ou mulher objeto de todos os desejos. Respeitar seu ritmo, compor sua melodia, sem cronômetros, compassos, esquadros, moldes, modas, fôrmas, peças de engrenagem ou manuais milionários de autoajuda. Poder preservar normas e cânones por reverência à tradição e poder romper com todas as normas e cânones por amor ao espanto, ao novo.

Poder viver a arte, viver com arte. Nascer e morrer num fluxo de renovação e permanência contínuas, mãos enlaçadas aos pais e aos filhos. Envelhecer com tesão pelas marcas e mudanças impressas no corpo, esse livro de histórias fantásticas. Sonhar todas as impossibilidades até chegar o dia do não poder maior, libertador, definitivo (?)

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