Haicais
Após três livros impressos dedicados exclusivamente ao haicai (Estações interiores, Na trança do Tempo e Arca de haicais) e de ter uma parte de outro trabalho (Ávida palavra) voltada para esse tipo de forma literária, Lena Jesus Ponte retorna em 2022 com Vidrilhos, agora em publicação digital, com belo projeto visual de Leonardo Barbosa.
São 100 haicais, que abordam temáticas diversificadas. Nem todos os textos se referem às estações do ano. Neste e em alguns outros aspectos, afastam-se da tradição nipônica. Mas mantêm a estrutura de três versos de 5-7-5 sílabas poéticas, característica do haicai japonês.
Admiradora da cultura do País do Sol Nascente, Lena Jesus Ponte mais uma vez procura estabelecer laços entre Oriente e Ocidente.
Acesse aqui, gratuitamente, o livro completo.
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Sobre o livro, leia o comentário da escritora Leila Míccolis a seguir.
Lena,
(…)
Encanta-me como você alia contexto e conteúdo a uma técnica perfeita, não há como não vermos e sentirmos o que lemos: é visivelmente marcante a sinergia entre imagem, som e até sensação táctil: quando você fala de pássaros, chego a ouvir o som de suas asas no ar; quando você indica “um mar sem metáforas”, meu corpo se arrepia ao frio da água. Acho excelente também você respeitar o formato 5 – 7 – 5, porque mesmo dentro deste contexto fixo, o conteúdo voa livre, flui como toda a natureza em seu harmonioso motu continuo – tudo é movimento, como observa um de seus haicais. É preciso muita habilidade e técnica para transcender a rigidez do formato, captando sensações fugidias como se fosse a tarefa mais simples e fácil do mundo.
Barthes, tão avesso aos estereótipos contidos na prática discursiva, abre exceção para o haicai, por ser “um lugar feliz em que a linguagem descansa do sentido”, a salvo das manipulações do sistema e do poder; o haicai aponta para o repouso e a desconversa, em oposição à “conversa” direcionada, articulada, com múltiplas intenções dentro dela. O haicai, ainda segundo o sociólogo francês, rompe com a lógica formal e metafísica ocidental, sempre tão forte que só com extrema dificuldade nos libertamos dela. Penso se Barthes não estaria referindo-se aos seus poemas, ao escrever estas considerações…
Só discordo de você quando leio: “Nem todos os textos se referem às estações do ano. Neste e em alguns outros aspectos, afastam-se da tradição nipônica“. Tudo é natureza para o haicai, mesmo quando à primeira vista as propostas temáticas parecem não se referir a ela; tanto assim é que na obra Natureza – Berço do Haicai – Kigologia e Antologia os autores Masuda Goga e Teruko Oda incluem nos tipos de kigos, para além dos que abordam as estações do ano, os fenômenos atmosféricos, geográficos e vivenciais (os últimos principalmente relacionados com colheitas, semeaduras, datas, festas e danças, por trazerem embutida a estação a qual pertencem); e sobre o Kigo propriamente dito, os dois poetas observam: “no KIGO reside a descoberta do transitório ou no próprio TRANSITÓRIO” (a cor, o cheiro, o frescor, a fragilidade, a plenitude emocional de um rápido instante). E é essa impermanência, este flash de segundos que você registra com precisão para que reflitamos e meditemos através da poiésis sobre tudo o que é e o que não é.
Plaina a paina ao vento.
No trapézio do ar, o ensaio
de existir suspensa.
Instante fugaz.
Sonha voos impossíveis
a sombra da garça.
Nasceu vida: cactos!
Sepultura de meu pai.
Pássaros plantaram?
Bolinhas de gude.
Um raio de sol no vidro.
E o menino brilha.
Posso afirmar com convicção que Vidrilhos é o livro brasileiro de haicais mais belo que li nos últimos anos, porque nele a natureza, em sua extrema delicadeza e perfeição, nos oferece as dádivas de sua exuberância transformadas em palavras.
Com carinho, Leila Míccolis