O baú de memórias autobiográficas de um escritor contém rico material para alimentar sua obra. Observadores da própria subjetividade, poeta e prosador devem, entretanto, recriar esse mundo interior, de modo a transcender circunstâncias pessoais e tocar leitores de todos os tempos e lugares.
Antônio Cândido, no ensaio Poesia e ficção na autobiografia, analisa três autores e aponta neles a capacidade de, “inserindo o eu no mundo, mostrar os aspectos mais universais nas manifestações mais particulares”. Entre os recursos por eles usados para transfigurar o dado comum, o crítico identifica o apelo à imaginação, a inserção do insólito no nexo corrente da realidade.
Belos exemplos desse tipo de literatura encontramos na obra do escritor Victor Giudice. Nos contos “Minha mãe” (do livro Salvador janta no Lamas) e “A única vez” (de O Museu Darbot), para citar apenas dois, referências de sua vida adquirem dimensão universal pela forma como são recriados literariamente.
No primeiro, o narrador assume forma feminina. A figura materna presente no título, sem nome no texto, mas denunciada na dedicatória, serve apenas de fonte inspiradora para a caracterização de personagem fictícia. Já no segundo, o narrador invoca o nome verdadeiro do pai no corpo mesmo do texto. Acumula detalhes biográficos (o que pode ser conferido no site oficial do escritor).
Em ambos, memória e imaginação costuram os fatos narrados. A saudade constitui o motor que desencadeia a ficção (“Ontem…me lembrei de meu pai.”; “Imaginei que se ainda estivesse vivo…” ; “… talvez movido pela saudade…” ; ” Talvez seja por isso que em minhas fantasias ela apareça…” ; “…senti que era preciso registrar essas lembranças o quanto antes. É uma forma de conhecer“).
Trazer pai e mãe para o universo ficcional permitiu ao autor recuperá-los do passado e daquela zona difusa de desconhecimento que cerca a relação entre pais e filhos. Não por coincidência, um dos contos começa e termina assim: “Como eu nunca vi minha mãe nem mesmo em fotografias…“; o outro conclui: “Foi a única vez que vi meu pai.“
O leitor dessas histórias salta, desavisado, num susto, do plano real para o fantástico. E aí, nesse território sempre novo, Victor é cada um de nós; seus pais retratam os pais de qualquer um; São Cristóvão, lugar aludido em tantos de seus textos, representa o espaço de emoção de todos.