Em entrevista ao jornalista Roberto D’Ávila, na televisão, há algum tempo, Gilberto Gil apontou três fatores indispensáveis ao processo de criação artística: a inspiração, o trabalho e o legado cultural. Sobre este último, demonstrou que todo artista participa de uma rede complexa de interinfluências que se dão através do tempo e do espaço. Prova dessa interação é sua música Pela internet, que dialoga, de forma criativa, com o primeiro samba gravado e registrado no Brasil, Pelo telefone (Mauro de Almeida e Ernesto Santos, o Donga).
Alguns compositores atuais possuem bastante clareza quanto à sua inserção nesse caldo cultural. Fazem dele ingrediente primordial de sua obra. Apropriam-se, de forma consciente, de elementos culturais preexistentes, reverenciam os antigos mestres, retomam elementos da tradição e recriam-nos. Atingem uma linguagem inovadora, alimentando-se da mistura de todas as influências. Arnaldo Antunes e Marisa Monte constituem exemplos de dois importantes compositores/intérpretes que seguem esse caminho.
O primeiro, artista multimídia, que Haroldo de Campos considerou herdeiro da Poesia Concreta, ao lado de uma produção de vanguarda musicou o soneto Budismo moderno, de Augusto dos Anjos, e fez releituras de Lupicínio Rodrigues e Nelson Cavaquinho. Quanto a Marisa Monte, ecleticamente abraça Pixinguinha e Carlinhos Brown, Candeia e Arnaldo Antunes, Velha Guarda da Portela e Titãs. Em um disco seu, na música Amor I love you, inseriu-se a leitura de trecho do Primo Basílio, de Eça de Queirós.
Quando o novo beija a boca da tradição, produz obras ricas em referências, verdadeiros exercícios de intertextualidade, a exemplo da composição do consagrado Alceu Valença, Maracajá, em que se encontram ecos de Drummond e seu “anjo torto”, alusões à história de Inês de Castro e aos filmes Anjo azul e Belle de jour.
Esse tipo de obra instiga o receptor; leva-o a ampliar seu universo e sua capacidade de fruição estética; constitui verdadeiro hipertexto, com links para as mais diversas áreas artísticas e culturais, de muitos tempos e lugares. Representa a confraternização de passado com presente. É semeadura para o futuro.