Mia Couto, na apresentação de Estórias Abensonhadas (Editora Nova Fronteira), declara haver escrito os contos desse livro depois da guerra civil em sua pátria, Moçambique. Informa que, por todo o período de barbárie, a “…terra guardou, inteiras, as suas vozes. Quando se lhes impôs o silêncio elas mudaram de mundo. No escuro permaneceram lunares.”
Esse depoimento reforça a ideia de que a história do ser humano com seus sonhos se escreve para além das fronteiras da realidade objetiva, das circunstâncias históricas, das convenções socioculturais. Para além da arbitrariedade devastadora das guerras, das incompreensões, do não entendimento, há preservado um território interno de criação constante: o reino do imaginário, que não é alienação, mas instrumento de revelação do real.
No primeiro conto, “Nas águas do tempo”, o avô, “homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver”, inicia o neto (o personagem narrador) no entendimento desse lugar especial e desconhecido da maioria, onde “Tudo que…se exibia, afinal, se inventava de existir.”- uma espécie de “terceira margem do rio”, para lembrar João Guimarães Rosa, de quem Mia Couto se aproxima em alguns aspectos, inclusive na invenção sobre a linguagem. A esse local mágico, cercado de mistério (“lugar das interditas criaturas”; “os receáveis aléns”; “terras não-firmes”; “interditos territórios”; “lago proibido”), chegam aqueles que aprenderam a ver os sonhos e são capazes de perpetuar, em seus descendentes, esse potencial de ir além das fronteiras do mundo superficial.
O sensível escritor moçambicano, assim como o avô do conto, nos ensina a ver para além do visível (“nós temos olhos que se abrem para dentro”); a ouvir para além da palavra (“…era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem”); a permanecer para além do tempo (“Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades”); a viver para além da morte (“E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer”). Nessa busca e encontro de espaços ainda por semear, ele vai além, inclusive, da fronteira da língua. Inventa palavras, articula sintaxes inusitadas, desperta em nós o susto da descoberta de imagens impensadas.
Para Jacqueline Held (O imaginário no poder, Summus Editorial), “O poeta é aquele para quem não existe um único mundo”. Assim também o romancista e contista Mia Couto, homem em flagrante poesia, sempre arrebatado pela novidade do escrever.