Destrói-se, pela força bruta ou pela sutil dominação ideológica e cultural, a História de um povo. Mas não suas histórias, seus mitos. Esses permanecem, férteis, fecundando narradores de outras épocas e de lugares distantes. Revisitados, reinterpretados, atualizados, os mitos antigos, com sua linguagem cifrada, irmã da Poesia, emprenham de múltiplos significados os textos contemporâneos.
Assim ocorre com Andanças Andinas, livro de Wanderlino Teixeira Leite Netto. Nele o autor descarta a alternativa fácil de documentar o exótico. A uma excursão turística superficial, prefere as trilhas não oficiais da História de nossos irmãos sul-americanos. Numa atitude de respeito e reverência, dedica sua obra aos vencidos, símbolos dos perdedores de todo o mundo aquém e além dos Andes. A partir da voz dos conquistados, o autor traz à tona costumes, rituais e crendices, sobreviventes de terremotos e catequeses, registros pulsantes do imaginário daqueles povos, expressões de suas sociedades.
Wanderlino, contudo, não se restringe a catalogar mitos. Dialoga com eles, reveste-os com sua visão de homem urbano, brasileiro, dos séculos XX e XXI. Mistura-os à sua mitologia pessoal, reinterpreta-os livremente, atribui a eles novos sentidos. Impregna o folclore local de impressões e sentimentos individuais. Lança sua sensibilidade invasora, porém não predatória, sobre aquela realidade distante. Lê os Andes e nos reconta suas (deles e dele) histórias de ouro e prata.
Pizarro às avessas, conto por conto recoloca as pedras de um cenário devastado pelo tempo e pelas conquistas espanholas (em suas vertentes bélica e religiosa). Conto por conto, reconstitui rostos de uma civilização decapitada. Vai além da realidade andina, entretanto. Escrevendo sobre os juanitos, metaforicamente nos alerta para a necessidade de repensarmos nossas desgastadas relações com a coletividade e com nós mesmos. Leva-nos a reconsiderar nossos mitos contemporâneos, tão vinculados a ideias de dominação, poder, individualismo. Remete a cultos antigos ligados ao Sol, à Lua, às águas, à Terra e, com isso, denuncia nossa pequenez: nós, modernos super-heróis de coisa alguma, pobres super-homens rompidos com a “Pacha-Mama” (Mãe-Terra).
Simples e ao mesmo tempo complexos como as construções incas, os contos de Andanças Andinas se encaixam num todo coerente e harmonioso. Livres da argamassa desnecessária de uma linguagem rebuscada, por certo também resistirão ao tempo.