Tempos atrás, fui ajudar os avós paternos de meus filhos a fazer sua mudança para a Zona Sul do Rio de Janeiro. Idosos, necessitados de amparo, não poderiam mais morar distante da família.
Não desperdiço afetos. Mesmo divorciada, preservo uma amizade sólida e atendo, com prazer, ao mínimo chamado dos velhos sogros (agora só do vovô, que a vovó se mudou definitivamente para aquele sítio enigmático onde tudo se transforma em adubo e saudade).
À época, toda a família foi mobilizada na tarefa de desempacotar lembranças, arrumar o passado na realidade ainda sem contorno do novo apartamento. Pretendia-se um eficaz esforço conjunto para rapidamente instalar os patriarcas. Os filhos, embora acostumados às lides empresariais, experientes em planejamentos para otimizar resultados, nem de longe previram que pequena variável atrasaria em dias o esperado para horas. Não constava do cronograma da mudança o fator curiosidade: netos, atuais noras, agregados de diferentes graus consanguíneos mergulharam numa viagem ao tempo a cada pacote aberto.
Brilhavam os olhos de minha filha às miçangas, escapulidas de potinhos, rolando pelo chão. Onde a vovó Colombina? Onde as fantasias? Dedos pescavam escamas de paetês fugidos para baixo dos móveis e reconstituíam desfiles de corsos e marchinhas antigas. A sobrinha vestia sua adolescência em luvas e chapéus anacrônicos, transformava em teatro o que já fora ato de vida. Meu filho mirava-se no espelho de fotos encardidas: aqui seus olhos nos olhos do bisavô, ali seu sorriso maroto na cara da bisavó… Na sala, uma voz lia manchetes amarelecidas: ” A Pátria, consternada, chora a morte de Vargas”. Entonação grandiloquente, seguia desencaixotando alguns vocábulos hoje desusados.
Uma vizinha solícita separava utensílios para guardar e destinava ao lixo objetos por ela considerados sem valor. A jovem desconhecia o apego do velho casal nordestino a tudo que se pudesse reaproveitar. Atavicamente conhecedores de tempos de secas e entressafras, marido e mulher tentavam salvar da sanha desperdiçadora pedaços de barbante, papéis de embrulhar pão, sacos plásticos de leite, tampinhas de garrafas, xícaras de asas coladas, um prato desgarrado daquele conjunto de porcelana do enxoval, sobras de rendas do Ceará, retalhos do lençol de algum fantasma amigo… As modernas armadilhas da sociedade do desperdício eles desconheciam, representantes de um tempo em que não se descartavam facilmente objetos nem afeto.
Por uma semana, em meio ao caos dos móveis desalojados, documentos perdidos, segredos achados, mudança mais sutil efetuou-se dentro de cada pessoa da família.