“Feche os olhos e escute o som do martelinho encantado: toc toc toc toc toc toc toc… bate, bate, martelinho…” Tamborilando seus dedos alternadamente no dorso de minha pequenina mão, papai escandia versos, desfiava trovinhas, me passava as primeiras lições de poesia.
“As palavras têm vida. A gente pode brincar com elas, fazer mágicas, inventar rimas: A pequena Lena morena come maisena. Só que, às vezes, as palavras escapolem da gente que nem peixinhos, que nem beijinhos…”E sapecava um beijo estalado em minha bochecha. Eu ria do trocadilho…
Um dia, em tom de desafio, propôs: “Faça uma quadrinha”. Aos seis anos, o melhor que consegui escrever levou as irmãs mais velhas às gargalhadas: A gatinha faz miau/ com carinha de pirão / na festinha de manhã / como se fosse avião. O pai tentou aplacar a gozação: “Está bonitinho, nêga. Tudo com sete sílabas, igualzinho ensinei, com rima e tudo”. Nessa época, eu achava que poesia era apenas uma espécie de música, me preocupava só com o ritmo, a batida do martelinho, as rimas. Pediam demais de mim as irmãs aquilo de querer que os versos ainda fizessem sentido!
Tudo que acontecia em casa motivava troca de versos entre mim e o pai. Até pito da mãe eu transformava em trova e enviava para ele, que devolvia com outra, cúmplice de minhas artes. “Precisa reparar nos serezinhos ao redor da gente: tudo tem poesia. Vê aquela borboletinha ali? Inveja ser flor. E aquela lesma? Desenha brilho molhado no chão. As coisas também gostam de virar verso. Para isso a gente aprende a olhar para elas de outra forma, por dentro, de cabeça para baixo… Tudo tem um outro jeito de se mostrar. Faça exercícios de ver diferente”.
À medida que eu crescia, papai complicava os desafios: “Escreva os dois primeiros versos, que termino a trova; depois começo e você conclui”. Ia inserindo questões existenciais, levava-me a refletir sobre o nunca antes cogitado. Brincávamos de filosofar, de discutir o além das pedras e do mar e da areia e do cheiro de mexilhões e algas da Praia Vermelha.
Nessa cumplicidade definitiva, papai me ensinou a importância de olhar com olhos de criança sempre. Despertou-me para a grandeza dos imensos mistérios e das coisinhas as mais miudazinhas e aparentemente desprovidas de magia.
Hoje mulher de 50 anos, vez por outra amigos me flagram de olhos fechados, distante. Não sabem que estou vendo o mundo pelo avesso, ouvindo o martelinho encantado, propondo ao pai já morto um novo desafio, uma trova para que conclua: Depois que morre o poeta / vive ainda a Poesia?