Diálogo poético em forma de haicais
(Homenagem ao Prof. Othon M. Garcia)
Em 1997, publiquei um livro de haicais – Estações interiores (Editoração Ltda., Rio de Janeiro). Após o lançamento, recebi do Prof. Othon M. Garcia, grande mestre de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, cordial carta em que fazia apreciação desse meu trabalho. Acompanhando a mensagem, enviou-me texto de sua autoria, intitulado O enterro da cigarra.
Trata-se de uma narrativa completa, em forma de haicais encadeados, cujo narrador é um “papagaio haicaísta”, que conta a história da morte de uma cigarra. Diferentemente do haicai japonês tradicional (pequeno poema de três versos, com sentido completo, sem título e sem obrigatoriedade de rima), esses do Prof. Othon, além de se estruturarem como uma narração constituída de 55 estrofes de três versos cada uma, apresentam um título geral, bem como rimas (algumas vezes do 1º com o 3º verso; outras vezes do 1º com o 2º ; outras do 2º com o 3º). O texto, dialogando com aquele gênero de poesia nipônica, constitui, assim, ousada inovação, sem perder, contudo, o espírito do haicai em sua delicadeza e referência à natureza. Dessa maneira, tradição e contemporaneidade dão-se as mãos nessa narrativa poética. Um primor de lirismo, reflexão e humor. Nele, percebe-se a presença criativa de jogos de palavras, trocadilhos, aliterações, belas imagens, além de ecos intertextuais também com a tradição artística e literária ocidental, a exemplo da alusão à famosa fábula de La Fontaine, ao poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe, e até mesmo a Carmem Miranda.
Pouco tempo depois, esse texto foi publicado no livro Farsilira (Editora Sette Letras, Rio de Janeiro, 1997), que abriga somente poemas em redondilhas – segundo a visão bem-humorada do autor, “exercícios de rima em redondilhas joco-sérias (algumas quebradas, outras desastradas, e quase todas com respingos autobiográficos e pitadas de humor)”.
Assim que recebi a referida carta do Prof. Othon, acompanhada do belo poema “O enterro da cigarra”, ainda inédito naquele momento, resolvi enviar-lhe uma resposta no mesmo estilo, tomando a liberdade de dar continuidade à sua história. Escrevi, assim, “A chegada da cigarra ao céu (ou história que o louro haicaísta não contou por ser muito vivo)”. Eu retomava, assim, meio sem querer, uma tradição também japonesa de haicais feitos em grupo – o renga-haicai – embora sem seguir seus rígidos cânones, segundo os quais um poeta faz os três primeiros versos, um outro completa a estrofe com mais dois versos, começa-se nova estrofe seguindo a mesma regra, e assim sucessivamente, podendo o renga contar com a participação de mais poetas. No nosso caso, apenas brinquei de continuar a história dele, acrescentando 7 haicais a partir do ponto em que a narrativa dele terminava.
Ele demonstrou apreço pela minha resposta. Iniciou-se, então, um curto período de troca de correspondência, em versos, entre nós. Já bem idoso, com sérios problemas de visão e audição, pouco tempo depois o mestre partiu, como a cigarra de sua história. Publiquei em sua homenagem, no jornal O Correio, o texto “A morte da cigarra”. Ficou-me, além da saudade, o registro lírico-afetivo de uma amizade a distância, fugaz porém intensa, intermediada por um secretário, que digitava os textos para ele e lhe transmitia os meus, e por seu filho Eduardo Amorim Garcia, amigo meu querido de tantos anos, que agora me autoriza a publicar esse diálogo poético em forma de haicais.
Creio oportuna essa publicação agora em meu site, como forma de homenagear não só o mestre Othon, em cujos livros tanto aprendi, como também o Japão, neste ano do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil (2008). Entre outras ricas manifestações da cultura nipônica entre nós, o haicai, aqui aclimatado e recriado, tem servido de inspiração a muitos brasileiros e fortalecido os elos entre Oriente e Ocidente, passado e presente.
Lena Jesus Ponte
Rio de Janeiro, novembro de 2008