O corpo da poesia

Sal e rima

A praia de minha infância
é a praia da infância
com seu mar vivo de peixes estranhos:
raia, cação, mangangá, lula,
polvo, moreia, sereia,
passando suas sombras gigantes
debaixo da canoa.

Menina o dia inteiro à toa.

* * *

O mar de minha infância
entupia a areia de conchas coloridas,
conchas furadinhas pra fazer colar
ou enfeitar bolos e castelos úmidos;
caramujos de se ouvir o ronco do mar;
línguas de sarnambis
e tatuís safadinhos, famílias inteirinhas
dos gordos e seus filhinhos,
correndo afoitos pras suas cidades subterrâneas
de túneis e casinhas.
Maré vazante, maré cheia…

Menina o dia inteiro o pé na areia.

* * *

As pedras de minha infância
abrigavam seu povo de moluscos:
filhotes de mexilhões em pencas,
os velhos nas cascas rugosas
que dava aflição comer de tão enormes!
Ostras navalhas que só pai pega com facão –
delícias assadas em fogão de pedra.
E algas lustrosas, cabelos de Iara,
musgos perigosos pro pé
– fé em Deus que com mar não se brinca –
baratinhas ariscas fugindo da gente;
olhos-d’água pra banho,
borbulhos, marulhos, barulhinhos,
aguinha intrometida procurando o quê
entre pedras?
Pedras, pedras, pedras, pedras,
lisas, escorregadias, ásperas, quentes,
altas, baixas, firmes, amigas,
formatos e tamanhos diferentes,
traiçoeiras, montoeiras de pedras,
de sentar, de deitar, de escalar, de pular…

Menina o dia inteiro a brincar.

* * *

A fome de minha infância
tinha nome de mar:
siri cozido, ostra assada, peixada com pirão…
A gente enfrentava o alto-mar
em proa de canoa.
Ruído de motor, varinha na mão,
cheiro enjoado de isca,
tremor na ponta da linha e do coração:
resistências… puxão firme
e “evém” o peixe
estabanando respingos!
A dor do anzol, o suplício,
mas tudo, depois, é só delícia frita!
Se a fome era muita
pra espera do almoço,
tinha tamarindos na árvore,
saliva na boca e dor nos maxilares.
Ou a criançada em alvoroço
empreendia a escalada da duna:
três passos pra cima, dois pra baixo,
o tropeço, a volta ao começo,
tentar outra vez a subida, língua de fora
e a hora final de vislumbrar lá longe
a beleza de um cartão postal –
cabos, arquipélagos, ilhas, geografias,
ao longe, um navio (de piratas, com certeza),
o mar gigante em câmera lenta.
Chegar ao topo e deixar cair o cansaço,
com estardalhaço, pernas à milanesa.
A máxima bem-aventurança
de encontrar pitangas no mato ralo,
empanturrar a pança
e escorregar duna abaixo a alegria!

Menina voava solta em fantasia.

* * *

A manhã de minha infância
chegava no arrastão:
a mão esfregando a corda áspera
à espera do mistério que vinha de lá,
do sem-fôlego, do abismo, das funduras.
Que coisa tão grande viria na rede
de tantos braços, pernas, músculos
não darem conta?
Um monstro marinho? O terrível tubarão?
A inacreditável sereia? Seria desta vez?
Manobras, gritos de ordem, pés afundando na areia,
as ondas puxando pro fundo
o que é do seu mundo.
Os homens tomando o comando,
domando a onda.
Fileiras de homens morenos, mulatos, crioulos,
o brilho do outro na pele tostada.
E a rede grávida expulsava
os filhos do mar que a emprenhara.
Tadinhos dos peixes com falta de ar,
se batendo, estorcendo, o sol nas escamas,
guelras abrindo e fechando,
escorregando entre as mãos, os cestos enchendo,
siris se mexendo lerdos, marias-farinhas,
sardinhas, águas-vivas, polvos, olhos-de-cão,
enguias, ouriços, baiacus rejeitados,
jogados de lado, inchados,
com dentes de gente, gemendo;
peixes grandes pra venda;
peixinhos miúdos pra criançada.

Menina de cidade enfeitiçada.

* * *

A tarde de minha infância
trazia ondas crespas e vento frio,
vento sul zunindo, chicote de areia,
o medo de entrar no mar,
mas tem que lavar o corpo
que depois não precisa de banho,
faz bem dormir com sal e iodo.
Era chegada a hora dos passeios.
Moedas pras bolachas na vendola;
ver passar o séquito de porcas enormes
seguidas de seus porquinhos;
visão de valas, várzeas, pântanos, lagoas;
cavalos pastando cuidadosos
pra não comer mata-cavalos;
tomar mineirinho e espuma de cerveja;
escutar conversa dos pescadores
tecendo redes e histórias:

“A madama vai virar folclore…
Pescou badejo um dia,
noutro mangangá,
no derradeiro foi moreia…
Rainha dos pescadores ela é!”
Disseram em coro.

Cadê Haroldo, Mamede, João, José?…
Não se sabe hoje
quem é pra riso, quem é pra choro.

Menina ouvia história e ria.

* * *

A noite de minha infância
não se abrigava em hotel:
Dona Tionília abria seu casebre e riso largo.
Chão de barro batido, parede de tábua,
lamparina, fossa lá fora.
O ronco do mar debaixo da esteira.
Ouvido colado no chão.
Olho aberto pro negrume.
O escuro não era pro medo –
era pra Via Láctea e seus segredos,
nata talhada por cima da gente, constelações,
Cruzeiro do Sul, as Três Marias,
as três irmãs fazendo pedidos pra estrela cadente.
Grilinhos, cicios, farfalhagens,
conversando bobagens
o pai, a mãe, as filhas
e o Espírito Santo sobre todos nós.

Menina adormecia em paz.

* * *

O tempo de minha infância não vinha do relógio.
Era do sol e da lua.
As férias duravam o ano inteiro
entre a animada arrumação de malas
e a volta no ônibus cheio.
O tempo era da infância:
a calcinha, a pele nua, o pé no chão.

Menina não olhava a hora não.

* * *

Trinta anos se passaram.
Copinhos de plástico, marcas, latas,
rugas, tampinhas, cicatrizes
sobre a pele e a areia.
A água não é mais a mesma.
Mas é o mesmo o espaço, a referência, o nome.
Itaipu continua no mapa e no fim da estrada,
embora com outra face.
A menina também mudou:
já tem até outra menina,
já tem relógio
e marca o tempo que passa.
No entanto é a mesma Lena
com seus sonhos e miragens.
Mas o pé no chão não sente só areia;
pisa também, agora, a realidade.
E como é boa esta nova idade
que transforma em mulher
quem foi menina
e constrói de lembranças um poema.

Itaipu, de sal que era, é verso e rima.

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